domingo, 5 de julho de 2020

Normatização institucional, moralidade e botequins nas noites de sábado.

Como você vai protestar contra qualquer sistema ou regime político, ou contra qualquer forma de governo, se você deixa a autoridade governamental ditar as regras da sua própria sobrevivência? Como pretende quebrar a atual organização social se você chancela a legislação criada para ferrar a sua existência?

Até uma semana atrás, presenciei uma grande parte da minha bolha social virtual vociferando impropérios contra as medidas dos governos, em suas três esferas, federal, estadual e municipal, acerca de isolamento social e sua flexibilização, acerca de abertura de templos, bares, escolas, uso obrigatório ou não de máscaras e a reabertura dos comércios.

Vi manifestações indignadas de pessoas que considero e que se autodeclaram progressistas ou integrantes da esquerda, contra as ameaças aos empregados com os cortes de direitos anunciados por Jair Bolsonaro e suas Medidas Provisórias assassinas, com suas aparições públicas sem máscara, suas declarações estapafúrdias que sempre resvalavam para algum ponto no qual poderíamos constatar o seu nada surpreendente pouco caso com a vida alheia.

Chegamos, inclusive, dois dias atrás, a mostrar indignação com os idiotas do Leblon que, tão logo tiveram acesso a bares e restaurantes sustentados pelo trabalho cada vez mais precarizado do proletariado do subúrbio, lotaram as ruas, aglomerando-se quando o país ultrapassava a marca de 60 mil mortes pelo coronavírus.

Mas, enfim... Eis que os governos já tomaram suas decisões: vamos abrir tudo, morra quem morrer, o que são cinco ou sete mil mortos?, a economia não pode parar, não sou coveiro, e daí?, quer que eu faça o que? Bares estão abertos shoppings também o povo não pode passar fome não fosse a oposição não iríamos mais estender o auxílio emergencial a quem necessita mas seguimos ignorando 28 mil militares que o sacaram indevidamente e não os devolveram aos cofres públicos esses mesmos que irão quebrar por causa dos seus 600 reais mas que tinham um trilhão e duzentos bilhões de reais para injetar em bancos (escrevi por extenso para mostrar realmente o tamanho da quantia) o cidadão médio xinga e chuta a porta desabafando eu não acredito que o governo está fazendo isso com a população ele quer nos matar... A gente perde até o ar e a pontuação, de tanta indignação!

Mas, então, chega sábado. Aquele sábado à noite, do qual todo mundo espera alguma coisa. E para meu estarrecimento, o que mais vi nas minhas redes sociais foram fotos de boys and girls em seus respectivos rolezinhos! O bar abriu, pô, o que eu posso fazer? Estava mesmo precisando sair de casa depois desses cem dias de isolamento em que o país não se isolou. Ain, amigo, não tenho culpa nenhuma. Foi um decreto do prefeito que liberou. Vai morrer gente de qualquer forma, se eu não tivesse ido tomar a minha cerveja hoje, outro teria e disseminaria o vírus da mesma forma. Não tem jeito!

É sempre o "não tem jeito" o argumento final. O dogma que advém da naturalização da tragédia. Não tem jeito! Vai morrer gente de qualquer forma. Não tem jeito! Se não fosse de coronavírus, seria de dengue. Não tem jeito! E as pessoas vão passar fome, sem trabalhar? Não tem jeito! Os governos fazem o que querem com a gente. Não tem jeito! No final, a gente sempre perde. Não tem jeito! Sempre foi assim e sempre será. Não tem jeito! E de não jeito em não jeito, vamos aceitando o lugar que decidem que devemos ocupar.

Legitimamos a lei que reflete a vontade de quem nos domina. E, formatados que somos dentro da ideologia que estrutura nossa sociedade, em vez de nos insurgirmos contra uma lei que não representa a nossa vontade, balançamos a cabeça, resignados, em aceitação: "está na lei, deve ser cumprido".

E então, vamos para o bar, aquele mesmo que não frequentamos nos últimos cem dias apenas porque a norma formal os manteve fechados. Aquele mesmo bar que criticamos, dois meses atrás, quando os jornais mostraram a mureta da Urca lotada e estampavam o absurdo número de 4 mil mortos no país por coronavírus. Porque a norma proibia aglomeração. Vamos para o bar quando os números de mortes ultrapassam 60 mil agora que a norma permite. 

Vocês não têm senso moral. Vocês apenas seguem o fluxo. Porque vocês não têm consciência alguma. Se é moralmente reprovável, mas formalmente admitido por qualquer institucionalidade, vocês aceitam. Vocês são tão gado quanto aqueles a quem criticam. Porque vocês apenas vão, bovinamente, satisfazer suas próprias vontades, permitindo que governos lhe digam onde vocês podem estar. E para vocês pouco importa onde podem estar. Desde que haja cadeira e mesa com cerveja gelada e tiragosto para todos.

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