terça-feira, 23 de junho de 2020

A prefeitura que não vai cuidar de você

Decreto da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro libera passageiros em pé dentro dos ônibus, possibilitando maior lotação. A mesma prefeitura havia liberado o comércio e o retorno da classe trabalhadora aos seus respectivos postos de trabalho.

"Mas, Guto, isso significa que a prefeitura se importa com a classe trabalhadora e, ao liberar mais vagas nos ônibus, permite que essas pessoas não demorem tanto tempo nos pontos de ônibus aguardando o próximo carro. A medida reduz as filas nos pontos e permite que os mais pobres possam acordar um pouco mais tarde, já que agora os ônibus cabem mais gente! É uma ótima medida!"

Não é. O Município, assim como o Estado, atua em favor da classe patronal. O ente público é um instrumento para beneficiar a classe burguesa e suas medidas sempre visam a beneficiar esses detentores de capital financeiro.

Primeiro, cede à pressão do empresariado e libera o empregado a voltar ao trabalho para que possa voltar a gerar o lucro do seu patrão. Para isto, usa a mesma retórica do presidente da república: "as pessoas irão morrer de fome porque a economia vai quebrar". Esse discurso nada mais é que uma chantagem praticada pelo governo, que pode ser lida da seguinte forma: "no neoliberalismo, nós, o Estado, estamos pouco nos lixando para vocês, classe trabalhadora. Por isso mesmo, não asseguramos sua subsistência, negando-lhes o básico, para que, quando estiver sem um centavo no bolso, sem comida, sem remédio, você vá correndo vender sua força de trabalho ao seu patrão". Chantagem.

Segundo, proporciona os meios para garantir o retorno do trabalhador ao trabalho. Para não se indispor com o empresariado de transportes públicos, não lhe exige que aumente as frotas de ônibus em circulação. Isso geraria mais gastos para as empresas de ônibus. Em vez disso, a prefeitura permite que os ônibus fiquem lotados. Afinal, se apenas a massa pobre trabalhadora faz uso de transporte público, se morrerem alguns trabalhadores de Covid-19, haverá outros para substitui-los e manter a engrenagem capitalista girando.

Lembrem-se sempre da frase de Júnior Durski, sócio de Luciano Hulk na rede de restaurantes Madero: "A economia não pode parar apenas porque vão morrer cinco ou sete mil pessoas". Já morreram cinquenta mil. A economia não parou. E os grandes empresários não quebraram.

domingo, 21 de junho de 2020

O Discurso do Empoderamento Como Mecanismo de Controle

Outro dia, vi uma postagem acerca da comum associação da desistência com o fracasso, que a maioria das pessoas faz com base no senso comum. “Se você desistiu, você fracassou”“desistir é para os fracos” e outras bobagens do tipo.  A postagem, bastante sensata, trazia a ideia de que desistir é necessário em muitos casos para preservação da sanidade mental, já que muitas vezes a gente desiste daquilo que nos faz mal. Só pude concordar.

Esse discurso de demonização do enfraquecimento está diretamente relacionado à estruturação do poder. Os que dominam impõem sacrifícios aos dominados. Estes, por sua vez, se sucumbirem, obstarão os interesses daqueles. Aquele que diz não ao que lhe causa sofrimento passa a ser visto como o desistente, como aquele que não aguentou, o fraco. A dominação lhe causa sofrimento. Logo, o desistente, ao abrir mão daquilo que lhe causa sofrimento em razão das imposições perpetradas pelos dominantes, paralisam as atividades que os sustentam.

Por isso mesmo, há tanta aceitação e propagação desse papo de "não desista, isso é para os fracos". Leia-se: "você não é fraco, continue se matando de trabalhar para alimentar meus privilégios". Tá ali, de mão dada com essa noção de romantizar o sofrimento. Vemos aos milhões no LinkedIn esse tipo de bobagem disfarçada de incentivo, em mensagens do tipo "o sucesso chega pra quem não dorme, não come, se esforça, a quem PARA DE RECLAMAR E PARA DE SE VITIMIZAR E VAI À LUTA". Muito conveniente.

No âmbito corporativo, o pensamento hegemônico, pelo menos na cidade do Rio de Janeiro, ainda é aquele que cria animosidade entre empregados, conferindo a uns as prerrogativas de capitão do mato, isto é, mantendo sobre estes a mesma opressão, mas fazendo-o acreditar que é melhor que o outro por lhe atribuir mais responsabilidades, incluindo o exercício do poder de vigilância. O pior é que esse discurso do falso empoderamento tem um poder gigantesco! “VOCÊ PODE! VOCÊ É CAPAZ! CONTINUE SE FERRANDO SEM PIEDADE E ENCHENDO MEU BOLSO DE DINHEIRO ENQUANTO EU TE FAÇO CRER QUE VOCÊ É IMPORTANTE!”

Trabalhei em um escritório que era craque nisso, criando essas disputas e afastando as pessoas umas das outras. Nada melhor para o opressor que criar separação entre os oprimidos. Empregados unidos representam uma ameaça. "Olhem o exemplo do Fulano. Mora no Inferno de Dentro, leva dezessete horas de ônibus para chegar aqui e outras dezessete para voltar pra casa. Por causa disso, vou delegar a ele um número maior de atividades porque SABEMOS QUE ELE É CAPAZ! Com isto, ele irá fiscalizar as atividades do restante da equipe.” Enquanto profere essas palavras, o pensamento percorre a cabeça do empregador: “Porque assim eu não preciso pagar um salário maior a um supervisor”.

Não compre essa ideia. Você é apenas mais um explorado no meio de tantos outros. Seu inimigo não é seu colega de trabalho que recebe o mesmo salário que você e a quem você foi designado para vigiar. Seu inimigo é quem lucra com base no seu esforço e não pensará duas vezes antes de cortar você do quadro de funcionários da empresa se lhe afigurar conveniente.

"Onde não queres nada, nada falta."

Uns três anos atrás, iniciei minha jornada rumo ao desapego, partindo para uma vida minimalista. Na ocasião, até comecei a compartilhar no Facebook o tanto de coisas das quais eu estava me desfazendo, roupas, livros, cds, bugingangas de todos os tipos e teve gente manifestando preocupação com minha sanidade mental, perguntando-me "o que estava acontecendo" comigo. Por "estava acontecendo", lia-se, "que tipo de loucura havia me alcançado para que, de repente, eu começasse a me despojar das minhas posses".

Ainda estou longe do minimalismo que eu gostaria de alcançar, mas no meio do caminho, aprendi algumas coisas. O verso da música O Quereres, do mestre Caetano Veloso vem sendo repetido por mim mesmo como um mantra nos últimos três anos. Percebi que estamos tão habituados à acumulação que, quando notamos que acumulamos tantas inutilidades e resolvemos que não as queremos mais, somos imediatamente questionados acerca da nossa saúde mental. É um processo de "naturalização do acúmulo" que nos faz ver como uma patologia o súbito desejo de não mais possuir.

A cultura indiana budista nos ensina que a dor vem do desejo, e que quando abrimos mão de desejar paramos de sofrer a falta. Não sou budista e tampouco pretendo discorrer sobre conceitos budistas. O que exponho aqui é a minha leitura particular acerca desse entendimento, sem nenhuma pretensão de saber se estou alinhado ao pensamento budista e se a minha ideia de desapego é a mesma adotada pelos adeptos dessa religião/filosofia.

Onde não queres nada, nada falta. Se você não deseja algo, não ter esse algo deixa de ser um sofrimento para você. Essa é a minha ideia de desapego e tento trazê-la para minha vida nas coisas mais simples. Antes de 2016, morei em uma casa imensa no bairro da Piedade, cujo banheiro possuía um box separando a área do chuveiro da área da pia e do vaso sanitário. Acredito que a casa da maioria das pessoas que lerá este texto tem um banheiro semelhante. Estamos acostumados a essa noção de banheiro. Se dissermos para pessoas da mesma classe média a que pertencemos e da mesma sociedade em que nos encontramos para que pense em um banheiro, sou capaz de apostar que seu banheiro mental terá um box para o chuveiro.

Quando me mudei para a minha casa atual, cinco vezes menor que a anterior, meu primeiro pensamento ao avisar meu banheiro foi "não tem box! Vaso, pia e chuveiro dividem o mesmo espaço! Vou molhar tudo quando tomar banho!" À época, mudar para esta casa era uma necessidade financeira. Então, a contragosto, aceitei a ideia de um banheiro sem box.

Meu primeiro banho na casa nova, evidentemente, molhou o banheiro inteiro. Apegado à ideia de que um banheiro deve ser seco após o banho, sendo apenas permitido manter o box molhado, tratei de passar um pano de chão em tudo, secando-o por completo. Até meu segundo banho. Ali, caiu a ficha. Por que diabos um banheiro que iria molhar a cada uso deveria ser enxugado? Aquilo era apego. Eu havia me apegado à ideia de que a parte fora do box dos banheiros devia ser seca. Apegado a tal ponto que a área de um banheiro sem box também deveria ser seca. No segundo banho, desapeguei. Não desejar um banheiro seco me permitiu não sofrer por não poder mantê-lo assim. Banheiros molham! Se não tenho um box separando, não preciso me importar em evitar isto. Hoje, tenho minhas dúvidas se, podendo escolher, eu escolheria um banheiro com box. A praticidade de sair do banho e não me importar em enxugar o banheiro me mostrou que não querer um banheiro seco permite não sentir falta de tê-lo. Onde não queres nada, nada falta.

Em 2020, estamos vendo nossa sociedade virando de pernas para o ar com a pandemia do coronavírus. Estamos vendo as crianças sem aula atrasarem seus anos letivos e pensamos "chegará dezembro e meu filho não terá terminado o ano!". Estamos vendo formandos universitários pensando "como vai ser para pegar meu diploma? Sem ele eu não tenho como ingressar no mercado de trabalho!" E aí eu pergunto: teremos um mercado de trabalho quando tudo isto acabar? Se acabar. Toda a discussão acerca da provável quebra da economia pelo prolongamento da quarentena revela exatamente o que um banheiro molhado me revelara três anos atrás: estamos apegados e talvez seja necessário praticarmos o desapego. Quem disse que banheiros precisam ser enxutos quando saímos do banho? E por que achamos que nossos filhos precisam encerrar o ano letivo antes de dezembro?

O medo que sentimos da economia quebrar revela que estamos tão apegados ao modelo de produção capitalista neoliberal que, quando vemos uma mera probabilidade de que ele venha a ruir, entramos em pânico. Queremos nos manter nesse modelo atual. E por querermos algo, sofremos quando não o temos. Onde não queres nada, nada falta. E onde queremos, sofremos a falta.

Essa sacudida que o coronavírus deu no mundo serviu, pelo menos, para um propósito: revelar a fragilidade do sistema de produção neoliberal. Empresários desesperados começam a conta de que quem produz seus lucros é a força de trabalho dos seus empregados. É o trabalhador que gera a riqueza. Isso o coronavírus nos mostrou. Então, urge que nos desapeguemos do modelo tradicional de produção e aceitemos que talvez nossa sociedade jamais volte a ser como era antes. Em vez de nos mantermos presos, apegados a uma ideia de mundo, podemos enxergar aqui a oportunidade da mudança.

Onde não queres nada, nada falta. Mas, quantas vezes você reclamou da exploração do seu trabalho e da sensação de falta de reconhecimento, da falta de ganho justo, da falta de tempo, do excesso de cansaço? Por que então é para esse sistema massacrante que você pretende voltar? Se não quiser existir nesta estrutura capitalista, não lhe fará falta não tê-la. Talvez tenha chegado a hora de você praticar o desapego e abandonar a ideia da sociedade que você conheceu. E assim, quem sabe, você nunca mais tenha que se preocupar em secar o chão do seu banheiro depois de um banho.

sábado, 20 de junho de 2020

Por que chamamos o motorista do Uber de Uber e não de uberista?

Pois acredite, este não é um questionamento inútil e nem é para ser engraçado. Já existe uma análise dentro do direito trabalhista e da sociologia do trabalho que questiona os perigos desse hábito. Quando a gente chama um TRABALHADOR pelo nome da sua EMPRESA, a gente o despersonifica, desumaniza. E quando despersonificamos a pessoa, tirando dela a sua humanidade, levamos junto a sua possibilidade de ser sujeito de direitos.

Ou por que foi tão necessário coisificar o negro na nossa sociedade escravagista, e por que nossa sociedade de consumo ainda o faz, perpetuando a exclusão social? A propaganda nazista, ao comparar judeus a ratos, desumanizou toda uma população, tornando menos desconfortável ao cidadão alemão o ato de abrir o gás tóxico ou de acender os fornos. Não viam "pessoas", viam "judeus", que eram o mesmo que "ratos".

O processo de invisibilização da pessoa é lento e quase imperceptível. Despersonificar o MOTORISTA DO UBER, transformando-o no UBER, tira do usuário a responsabilidade sobre uma PESSOA, que tem um trabalho precarizado e não reconhecido como vínculo de emprego pela maior parte do Judiciário. E se a sociedade não enxerga o ser humano sendo explorado, passa a não se importar. Deixa de comprar o barulho, mantendo muito confortável a situação da EMPRESA, que lucra absurdamente em cima do trabalho de uma PESSOA, e que tem publicidade gratuita entre seus usuários, quando não elogiam o motorista e sim o aplicativo.

Contratamos o Uber, o iFood, o Rappi, e pouco nos importamos com as condições que tais empresas fornecem aos "uberistas", "ifoodistas", "rappistas". E quem é desumanizado se torna invisível. Não importa se está chovendo canivete, nossa fome não se preocupa se UMA PESSOA vai se molhar e passar frio para trazer nossa comida. Apenas pensamos que um aplicativo fará isso por nós.

quarta-feira, 17 de junho de 2020

Passa da hora da taxação de grandes fortunas no Brasil

Somente o Itaú-Unibanco, o Santander, o Bradesco e o Banco do Brasil, juntos, em 2019, tiveram um lucro líquido de aproximadamente 87 bilhões de reais. Isso mesmo, quatro empresa, apenas quatro empresas juntas tiveram um lucro... Vejam bem, estou falando de lucro, não de rendimento. Lucro. Dinheiro livre, depois de cobertas todas as despesas e custos... Pois bem, quatro empresas tiveram um lucro equivalente a aproximadamente 2,5% de todo o orçamento da União em 2020, instituído na lei orçamentária para este período.

De acordo com a lei orçamentária, o investimento do governo com saúde, previsto para o ano de 2020 é de 125,6 bilhões de reais. Ou seja, quase 70% do valor que o governo federal deveria gastar com saúde em todo o ano de 2020 foi obtido como lucro de apenas quatro bancos.

E quem produziu tudo isto? A nossa classe trabalhadora. Ou por que você acha que estão dizendo que a economia vai quebrar sem você nas ruas, queride trabalhadore?

Urge que o governo federal faça empréstimo compulsório com as empresas que tiveram maior lucro em valores absolutos, na forma do artigo 148, I e II, da Constituição Federal, para custear as despesas decorrentes da calamidade pública que é a pandemia do coronavírus, bem como para investir em saúde e na garantia de renda mínima para a população mais necessitada, e maior vítima do caos que se instaurará na saúde e na economia.

Como iria restituir as empresas? Taxando grandes fortunas! E para ontem! Porque o princípio da anterioridade estabelece que impostos sobre patrimônio ou renda somente poderão ser cobrados no ano seguinte, com intervalo mínimo de noventa dias, ao da publicação da lei que o instituir. Isso significa que, ainda que fosse publicada hoje uma lei que instituísse imposto sobre grandes fortunas, sua cobrança somente seria válida a partir de 1º de janeiro de 2021.

Não há lei regulamentando o imposto sobre grandes fortunas no Brasil, de tal sorte que poder-se-ia discutir ainda o valor mínimo do que poderia ser considerado grandes fortunas, quais seriam as alíquotas e as faixas de incidência de cada uma delas. Em 2017, a Senadora Vanessa Grazziotin, do PCdoB-AM, apresentou o projeto de lei do Senado nº 139/2017, para regulamentar o artigo 153, VII, da Constituição Federal, instituindo o imposto sobre grandes fortunas.

De acordo com o PLS 139/2017, grandes fortunas seriam aquelas equivalentes a, no mínimo 8 mil vezes o imite mensal de isenção do imposto de renda para pessoas físicas. Atualmente, seria o equivalente a uma renda mensal de aproximadamente 19 milhões de reais. Isso mesmo, operário/a classe média que se acha riquíssima/o por ter um salário de 5 mil por mês. Esse imposto não é para você. Ainda para o PLS 139/2017, a alíquota mais alta seria de 1% para quem tivesse uma renda mensal equivalente, atualmente, a cerca de 178,5 milhões de reais. Esta única pessoa, se considerarmos sua renda como a última mencionada, em um ano pagaria 21,5 milhões. Imagine que apenas os quatro maiores bancos, pagando uma alíquota de 1%, teriam desembolsado 870 milhões de reais em imposto. Agora, imagine se tivéssemos uma alíquota de 2,5% o 3%.

Pois é, amiguinhe. É deste imposto que nosso congresso tem fugido e que nosso presidente tem ignorado.

O governo federal deveria ter estas medidas como plano de emergência para a crise social que estamos enfrentando em decorrência do coronavírus. Lembremos que o lucro do empresariado é fruto do nosso trabalho e é exatamente por isso que você e eu estamos sendo chantageados pelo presidente e seus capangas para que voltemos às nossas atividades, a despeito de adoecermos com a infecção. Não se engane: se você morrer, haverá outro pobre diabo ocupando seu lugar. Desde que a engrenagem não pare de rodar, o patrão terá garantido o próprio lucro com o trabalho que você exerceu. É por isso que querem que você saia de casa.

Um empréstimo compulsório de 60 bilhões de reais poderia assegurar renda mínima de um salário mínimo mensal pelo período de um ano a pelo menos 4,8 milhões de pessoas. Enquanto isso, seu governo fala em deixar morrerem 5 a 7 mil pessoas (e já morreram sete vezes mais que isto) para proteger o interesse das empresas que, como você viu, poderiam contribuir de forma muito mais efetiva para financiar as atividades estatais que com esse papo mole de que, quebrando a economia, quem se quebra é o povo.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Bolsonarismo versus saúde pública

Já há algum tempo, a bestialidade desses animais bolsonaristas se voltou para os profissionais de saúde. Semanas atrás em Brasília uma manifestação pacífica de técnicos e enfermeiros foi atacada por um grupo de "cidadãos de bem", com palavras grosseiras e intimidação. Um dos atacantes foi identificado como missionário evangélico. Não sei porque não fiquei surpreso.

Em Fortaleza, um ônibus que transportava profissionais de saúde foi apedrejado por esses mesmos grupos.

Agora, depois da ordem dada pelo Presidente para que seus seguidores invadam hospitais e promovam balbúrdia (entendeu o significado agora, Weintraub?), um grupo de milicianos bolsominions invadiu o hospital Ronaldo Gazolla promovendo quebra-quebra. Sim, DENTRO DE UM HOSPITAL.

Mas, o que querem essas pessoas?

Essa horda de zumbis bolsonaristas não age mais dentro de qualquer lógica racional. Não dá mais para tratar essas bestas selvagens com parâmetros de humanidade.

Os profissionais de saúde cuidam dos doentes. E como esses animais acham que não existem doentes, que é tudo invenção da "mídia comunista", como tivemos a irresponsável mitômana Carla Zambelli espalhando fake news de que estariam enterrando caixões vazios, reforçando a teoria da conspiração, o animalado negacionista começa a ver com desconfiança todos os dados oficiais.

Assim, tudo que vai de encontro a essa narrativa lunática criada por eles, alimentada por gente como Jair Bolsonaro, Carla Zambelli e outros dessa mesma corja, torna-se uma ameaça para essa gente não pensante, mas que existe e se multiplica, incentivada pela influência da quadrilha que eles mesmos colocaram no poder.

A atuação dos profissionais de saúde reforça o discurso contrário, que essa legião insiste em dizer que é mentira. Com isto, os profissionais de saúde passam a ser vistos como mentirosos mancomunados com a "mídia comunista" para desmoralizar o líder religioso que seu fundamentalismo os obriga a seguir.

Não é possível lidar com essas pessoas valendo-se de discurso de paz e amor. É preciso neutralizá-las. É preciso calar Jair Messias Bolsonaro e Carla Zambelli, devolvendo-os ao ostracismo de onde jamais deveriam ter saído. A gente está falando de um grupo de negacionistas que querem voltar a movimentar a economia e acham que tudo o que está acontecendo é uma conspiração chinesa para quebrar a economia ocidental e implantar o comunismo no mundo.

Não é possível dialogar com pessoas que atacam aqueles que estão trabalhando na linha de frente do combate ao coronavírus. E os atacam simplesmente porque são profissionais de saúde. E profissionais de saúde, ao clamarem para que as pessoas fiquem em casa, tornam-se uma ameaça. Tornam-se comunistas e inimigos do mito. Bolsonaro já é um fenômeno religioso e está protegido pela horda de fundamentalistas que o seguem por fé.

Em 11 de maio deste ano, escrevi em meu perfil do Facebook:

"Não irei me surpreender quando os jornais começarem a divulgar notícias de que esses mesmos grupos de seres sem cérebro terão tentado invadir hospitais de campanha para destruir leitos construídos e atacar as pessoas que estão trabalhando ali."

Pois então, os jornais estão anunciando. Quem puder, fique em casa. Mas, se formos para as ruas, tratemos no soco todos os bolsominions que encontrarmos. Tolerar a intolerância é ser com ela conivente. E confundir a reação de defesa com a ação do ataque é má-fé intelectual.


terça-feira, 9 de junho de 2020

Antibolsonarismo é uma questão de princípios

"Ain, migo, é meu tio... É uma amiga... Não vou me indispor, né? A gente sempre se deu bem no passado. Não vou deixar a política criar estresse na relação."

Em nome de um passado, estamos nos sujeitando a não termos futuro. Tenho ainda em meu perfil das redes sociais como contatos adicionados – não mais como amigos – parentes consanguíneos e gente que foi parente por afinidade e que, já que não existe mais afinidade, não há mais relação de parentesco.

Um tio bolsonarista fez o favor de sumir do mapa antes das eleições e não lamento. Espero que os outros que, infelizmente ficaram vivos para serem comparsas de quem elegeu esse criminoso, sigam o mesmo caminho. Ou mudem. Não tenho motivo nenhum para guardar com carinho um passado de quem não me enxerga no seu futuro...

"Por que não deleta esses parentes?"

Porque quero que eles me leiam. Quero que eles pensem no que andam fazendo. Porque não mudamos a realidade do mundo falando somente com nossa bolha ideológica. E se, hoje, não tenho qualquer vontade de coexistir com essa gente, desejo que um dia acordem para a realidade e apoiem a mesma luta que eu apoio, da inclusão e da igualdade de oportunidades. Se um dia isso acontecer, é possível que eu desenvolva alguma admiração de quem revistou o próprio ponto de vista, assumiu um erro de postura e se dispôs a mudar, com humildade para dizer "eu errei".

Eu errei! Eu já vivi numa bolha de privilégio de quem é homem cisgênero, branco, filho de classe média, e achava que movimento social era mimimi. Que militância era bagunça. Não tenho vergonha nenhuma de assumir o tanto de bobagem que pensei e falei. Embora me envergonhe desse passado em que eu dizia que "tudo bem ser gay, mas não precisa dar pinta" ou "bandido bom é bandido morto" ou "mulher já vota, já trabalha fora, o que mais ela quer?" eu aprendi a me apropriar da minha história sem renegá-la, para transformá-la.

E é por saber que eu mudei que eu acredito que outros também podem.

Mas, não, não somos mais amigos. Não me esperem no almoço de domingo ou na ceia de natal (detesto natal, inclusive). Não contem comigo para nada. Para nada! Não esperem qualquer manifestação de carinho ou palavra de conforto que não seja, somente no caso de uma mudança de posicionamento político, "bem-vindx à minha luta". Caso não aconteça, permanecemos inimigos.

domingo, 7 de junho de 2020

A nova direita conservadora segue obsoleta como os velhos liberais

Dia desses um amigo a quem eu outrora definia como liberal, talvez o único com esta qualificação que eu considere com afeto no meu círculo de contatos, tentando explicar seu ponto de vista sobre o mundo, a política e a sociedade, definiu-se como um conservador, corrigindo-me por categorizá-lo como liberal.

Disse-me, então, que conservadorismo seria um termo que melhor descrevia sua perspectiva política, alertando-me se tratar de algo extremamente complexo, que ultrapassaria o entendimento mediano acerca de definições como direita ou esquerda e liberal ou intervencionista. Sugeriu-me um vídeo para que eu assistisse a uma entrevista com o filósofo e escritor Eduardo Wolf, que discorreria sobre quem seria "a nova direita", para que eu compreendesse melhor seu ponto de vista acerca do conservadorismo, como contraponto ao progressismo, de forma que ampliasse minha visão para além da dicotomia "esquerda e direita".

Quando alguém me alerta sobre a complexidade de um tema sem me dar qualquer explanação sobre ele, embora eu me ache minimamente inteligente, não pressuponho que qualquer conhecimento que eu tenha sobre qualquer assunto seja suficiente para tornar fácil o entendimento sobre aquilo que pretendem explicar ou me apresentar. Se me dizem que o assunto é difícil, partirei do princípio de que é, de fato, difícil.

Assim, assisti à entrevista do filósofo Eduardo Wolf, esperando que talvez uma nova forma de compreensão que até então me fosse desconhecida me convencesse de que a nova direita pudesse ser uma corrente ideológica com a qual, quem sabe, eu viesse a me identificar se abrisse mão dos meus preconceitos. Não foi desta vez.

Para minha surpresa, o assunto que eu esperava que fosse "bastante complexo" se mostrou bastante raso e superficial e não me apresentou absolutamente nada que eu já não soubesse e que já não tivesse refutado na construção da minha percepção de mundo.

A entrevista já começou mal quando tomou por pressuposto a existência de uma "natureza humana" sobre a qual se pretendia discorrer. A ideia de natureza humana não encontra respaldo na ciência, sendo tema de um debate antigo entre as ciências sociais – história, sociologia, antropologia, etc. – e as ciências naturais, em especial a biologia. Para as ciências sociais, não existe uma natureza humana. Ou seja, ao contrário do que se verificam em outras espécies animais, que possuem características inatas, gravadas em seu DNA, que conferem a todo o grupo daquela mesma espécie, aspectos comportamentais, inclusive a capacidade de socializar, como as abelhas e formigas, ou instintos de sobrevivência, sexuais ou alimentares, o ser humano é fruto do processo socializador e cultural. Assim, exemplificando, enquanto um filhote de leão que nunca fora antes apresentado a um naco de carne, se for colocado diante do primeiro bife sangrento, avançará vorazmente para se alimentar, sem que ninguém necessite ensiná-lo que aquilo é comida. O ser humano, ao contrário, saberá que algo é comestível porque antes dele outros seres humanos foram socializados, condicionados, ensinados que aquilo – seja lá o que for – é comida. Por isso, enquanto nossa sociedade observa com horror algumas sociedades orientais deliciando-se com carne de cachorro, outras sociedades, como a indiana, nos olham chocadas por comermos carne de vaca, animal que consideram sagrado.

Quando a entrevista já parte da ideia de que existe uma natureza humana a qual se propõe a explicar, a mim já pareceu bastante problemática. Se por um lado, a discussão sobre a existência ou não de uma natureza humana não é pacífica, sendo ainda objeto de debate entre a biologia e a antropologia, por outro, o mais perto de certeza a que já se chegou é a de que, se existem aspectos da humanidade que são inerentes a todo e qualquer ser humano, independentemente da cultura em que esteja inserido, tais aspectos se revelariam apenas potencialmente capazes de definir o desenvolvimento daquele indivíduo, não sendo condicionante de qualquer "destino traçado" se o indivíduo não for exposto a condições sociais que efetivamente estimulem aquele potencial supostamente inato. Repito, SE EXISTIREM.

A entrevista prossegue afirmando que o conservador da atualidade está imbuído do pensamento liberal do século XVIII, formulado por pensadores iluministas europeus e estadunidenses que visavam a derrubar o Antigo Regime, o absolutismo monárquico que concentrava todo o poder estatal na pessoa do Rei. Com isto, propõe-se a tecer loas ao conservadorismo, tomando novamente por princípio que o pensamento liberal, ao asfixiar a tirania absolutista, necessariamente deveria ser aceito como o padrão de comportamento, isto é, o filósofo entrevistado partia já da ideia de que as reformas liberais do século XVIII haviam sido positivas e que, por conseguinte, os conservadores atuais, a nova direita, ao repetir o mesmo padrão de ideias, estaria de acordo com o dever ser. O que se verifica, portanto, é que existe uma moralização maniqueísta que pressupõe, necessária e inegavelmente, que o antigo regime seria em si mesmo uma coisa ruim ou negativa e o ideal revolucionário burguês, inspirado no iluminismo, seria necessariamente algo bom ou positivo.

Não se aventa em nenhum momento que o republicanismo liberal que pairou sobre a Europa e os Estados Unidos no final do século XVIII seria estimulado por uma visão eurocêntrica do mundo e que, se trazia vantagens à sociedade europeia e à dos Estados Unidos – que lhe copiava – não se podia dizer o mesmo para as demais sociedades colonizadas pelo pensamento europeu. Pensadores liberais eram preocupados e comprometidos com a burguesia ascendente. O conservador – ou a direita contemporânea – reproduz, portanto, o mesmo padrão eurocêntrico burguês, que seleciona grupos por sua suposta trajetória evolutiva, justificando, com isso, que países da Europa pudessem invadir outros territórios, dizimar suas populações, suplantar as culturas locais, impor o seu padrão de pensamento, roubar suas riquezas. Tudo porque a natureza humana dos europeus supostamente os faria superiores.

Outro aspecto que me chamou atenção na entrevista foi que o filósofo entrevistado tomou como pressuposto que os debates existentes sobre direita e esquerda já são travados a partir de um ponto moralizador, que coloca a direita como egoísta e individualista, e a esquerda como preocupada com a coletividade. Assumindo que os debates partem desse princípio, propõe-se a construir uma "defesa" da direita, tentando desconstruir a falsa percepção de que a direita seria uma espécie de vilã. Equivoca-se, porém, quando nivela o debate público pela ótica do senso comum, atribuindo aos debatedores uma superficialidade meramente pautada pela moralidade do bem e do mal.

Diferentemente do que dá a entender Eduardo Wolf, os debates mais sérios sobre direita e esquerda têm como elementos estruturais condições objetivas que não estão necessariamente vinculadas à noção de bem ou mal, o que somente viria a se concretizar em um momento posterior, numa etapa em que aspectos subjetivos viessem a ser colados aos objetivos, após um juízo de valor atribuído a cada elemento constitutivo dos conceitos de direita e esquerda.

Neste aspecto, poder-se-ia dizer que, politicamente, o pensamento de direita é atrelado à noção de necessidade de eficiência do ente público, partindo do princípio de que a sociedade é naturalmente desigual, não havendo nada que se possa fazer quanto a isto. Traz as noções de que os indivíduos são recompensados de acordo com o tamanho do seu esforço, o que faria a sociedade melhor ao estimular a todos darem o melhor de si, sendo proporcionalmente recompensados. Assim, se a desigualdade social persiste, isto se dá porque há menos esforço de um grupo e mais do outro.

O pensamento de esquerda, por sua vez, parte do princípio de que as desigualdades sociais não são naturais e, por decorrerem das relações sociais, podem e devem ser combatidas. O valor perseguido pelo pensamento de esquerda é o da equidade, devendo existir uma responsabilidade social de cada membro do grupo para com os demais. Desta forma, o ente público, manifestado pelo Estado, deve ser forte, para fomentar o combate às desigualdades através da gestão de recursos, arrecadando tributos e distribuindo riquezas com o escopo de reduzir as diferenças.

Quando um pensador de direita, conservador, assume que os debates se pautam na "vilanização" da direita, isto me parece problemático por configurar que o próprio pensador lhe atribui tais valores.

Por fim, a proposta de Eduardo Wolf é a de que, por não serem esquerda e direita conceitos fixos que se encerram em si mesmos e, que por causa disto, devem ser sempre analisados à luz de um parâmetro comparativo, hoje não seriam precisos para delimitarem espectros políticos e ideológicos. Decorrente disto, conclui que em vez de utilizarmos termos direita e esquerda, mais sentido faria que fossem usados os termos conservador e progressista, que, de acordo com ele, melhor definiriam os dois grupos ideológicos.

Para mim, há tempos já estava clara essa imprecisão na utilização das palavras direita e esquerda, já que ambas necessitam sempre de um referencial ("direita ou esquerda em relação a que?"), fazendo sentido que se almeje substitui-los por conservadores e progressistas, sendo o primeiro aquele grupo formado por quem pretende manter – ou conservar – a sociedade tal como se encontra, e o segundo, aquele que, reconhecendo necessidade de reestruturação social, tem por objetivo mudar a sociedade.

Desta forma, considerando-se que o conservador – ou a nova direita – assume como ponto de partida que as desigualdades sociais decorrem de uma natureza humana, na qual, com o respaldo que me é dado pelas ciências sociais, eu sequer acredito, e para os conservadores já se trata de fato posto; considerando-se que os conservadores também já assumem como pressuposto inequívoco que o modelo de organização social europeu colonizador deve ser reproduzido por todas as demais organização sociais, sem respeitar as diferenças de cada uma delas; considerando-se, ainda, que o pensamento republicano liberal do século XVIII, é dogmático no tocante às vantagens do republicanismo, da descentralização do poder e/ou da duração de mandatos, em oposição à concentração do poder vitalício na mão do rei, por adotar como premissa inquestionável que a concentração do poder vitalício será sempre prejudicial, continuo não convencido de que tal pensamento proporcione melhores condições às sociedades. Por todos esses motivos, continuo achando que deve ser rechaçado por gerar mais desigualdade e injustiça.

A quem tiver interesse, segue o link com a entrevista: https://youtu.be/22W9zQH3MYg

sábado, 6 de junho de 2020

O neoliberalismo nosso de cada dia

Meu pai é um microempresário, no ramo de produtos alimentícios. Quando eu era criança, testemunhei negociações entre ele e outras pessoas no mesmo ramo, a fim de estabelecerem critérios de produção e mercado que pudessem atender a todos que atuavam na mesma área. Lembro como me causava estranheza ver meu pai dialogando com outros concorrentes, numa tentativa de encontrarem diretrizes que fossem benéficas a todos. Na minha cabeça, concorrente era inimigo. Meu pensamento se estruturava da seguinte forma: o produto comprado na mão de um concorrente deixaria de ser comprado na mão do meu pai. Logo, isto significava que estariam tirando do meu pai a possibilidade de ganhar o seu dinheiro. Portanto, o concorrente deveria ser eliminado do mercado. Um dia experimentei comprar de um concorrente para saber como era seu produto. Fiquei tão envergonhado depois, que nem tive coragem de falar em casa. Receava levar uma bronca. Na minha cabeça, eu havia traído o meu pai.

Depois de adulto, já ingressando no mercado de trabalho, percebi que meus colegas de faculdade eventualmente seriam meus concorrentes. Amigos meus! Camaradas! Brothers and sisters! Como seria aquilo? Como eu lidaria numa mesa de audiência na qual, do outro lado, um/a melhor amigo/a, estaria defendendo interesse diametralmente oposto ao meu?

Percebi que era possível ser concorrente dos meus amigos sem deixar de ser amigo. Em verdade, era mais fácil ser parceiro dos meus amigos. E até hoje funciona assim. "Oi, estou sem tempo para pegar essa causa, quer pegar para você? Posso te indicar se quiser". E assim estabeleci boas parcerias com pessoas de minha confiança. E já me deparei com amigos defendendo empresas que eu estou processando. A amizade não fica abalada. Não é nada pessoal. Cada um precisa obter sua forma de levar a comida para casa.

Mas, a visão de que aquela pessoa é uma potencial concorrente permanece ali, quietinha em algum canto da mente. Hoje, somos parceiros. Até o momento em que tivermos de concorrer a uma mesma vaga no mercado de trabalho. "Boa sorte para a gente, amiga/o", dizemos no processo seletivo meramente por cordialidade, já que desejamos que a vaga seja nossa e não do outro. Até desejamos que o outro se dê bem de alguma forma. Que apareça por milagre outra vaga. Viramos inimigos quando um é selecionado e o outro descartado? Não. Mas, o pensamento enraizado é o de que o nosso amigo, nessas circunstâncias, é o nosso concorrente. E que nossos interesses são antagônicos. Minha sobrevivência pela do outro. Farinha pouca? Meu pirão primeiro. "Poxa, amigo/a, que pena que a vaga não foi sua", dizemos comemorando o fato de termos sido nós os selecionados.

Não, não estou dizendo que somos falsos e que não desejamos realmente que nossos colegas, amigos, parceiros, se deem bem. O que estou dizendo é que a racionalidade neoliberal nos põe constantemente em dilemas, fomentando a concorrência nas nossas relações mais próximas.

Advogado defensor da valorização da profissão, várias vezes já me indispus com colegas muito queridos porque enquanto eu recuso trabalhar por qualquer preço, eles aceitam a causa. "Se não for eu, será outro. Preciso desse dinheiro", dizem, ainda que posteriormente se queixem da desvalorização da profissão e não se deem conta de que são responsáveis por isso a cada caso que pegam em valor abaixo da média.

Agora mesmo, durante a pandemia de Covid-19. A gente lamenta o colapso da saúde pública e chora pelas 300, 400, 1.500 mortes diárias, da falta de leitos e de materiais necessários ao correto atendimento para cada uma das vítimas. Mas, quando o único leito disponível no hospital tiver de ser disputado entre você ou seu filho com uma pessoa desconhecida, filha de alguém também, talvez arrimo de uma família inteira, para quem você torcerá? Estaria disposto/a a abrir mão da vaga da sua mãe no hospital para deixá-la para um desconhecido, tão merecedor de permanecer vivo quanto ela? E se escolher viver, sabendo que pessoas morrerão por isso, isso faz de você um monstro?

Não se culpe. A culpa não é sua. A culpa é do pensamento neoliberal, que precisa fomentar a concorrência para se sustentar. Não à toa, o mercado oferece sempre menos vagas do que a sociedade dispõe de pessoas para preenchê-las. Trabalhadores concorrentes não se unem, disputam. Trabalhadores disputando não reúnem força para combater aqueles que os exploram. O neoliberalismo quer que você seja inimigo do outro trabalhador. Para que você garanta sua vaga com unhas e dentes, dando o máximo de si para enriquecer o seu patrão, já que, se não o fizer, o seu concorrente usurpará a vaga que é sua.

Neste podcast, o juiz Rubens Casara levanta o questionamento: "Qual seria a saída neoliberal? Aproveitar a crise para gerar ainda mais lucro para uma parcela reduzida da população ou aproveitar a crise para mudar o modo de pensar e atuar no mundo?"

sexta-feira, 5 de junho de 2020

O capitalismo é tão natural quanto andar mascarado

Daqui a cem anos, mostrar a boca, o nariz e o queixo será um tabu. Como já fazemos com os órgãos sexuais. Talvez até desenvolvam desejos sexuais relacionados à exibição de boca, bigode, dentes... Gerações de filhos de pais mascarados crescerão acreditando ser natural usar máscara no rosto. A peça já tem suas versões decoradas, estampadas, com brilho, em couro, etc... Isso nos mostra uma insistência em nos adaptarmos às condições impostas meio, de tal forma que toda a cultura produzida em razão deste meio passa a ser vista como uma tendência natural, como uma "natureza humana".

Gerações futuras de moralistas mascarados dirão que, pelo bem da família, homens e mulheres não poderão tirar a máscara em público. Não será mais uma questão de saúde. Será uma questão moral. A pornografia mais vulgar será aquela em que homens e mulheres mostram todo o rosto. E sorriem quando o fazem! Conservadores dirão que se Deus quisesse que não usássemos máscaras, não nos teria dado a capacidade para criá-las... Nós, que vimos a inserção da máscara no nosso cotidiano, sabemos que não há nada de natural nisso. Nós sabemos que a sociedade está se reformando ao incluir a máscara como item obrigatório de vestuário.

Nós sabemos que a natureza não nos fez mascarados e que, se as máscaras, daqui a cem anos, serão naturalizadas por sua inserção na cultura humana, isso terá ocorrido porque houve um condicionamento da sociedade para incluí-la e para aceitá-la. Nós, já velhos, saberemos que a vida era possível sem máscara. Os nossos bisnetos e tataranetos talvez não acreditem nisso. O mesmo acontece com o capitalismo. Nossa geração pensa ser impossível viver em outra realidade. Pensamos que o capitalismo é um modo natural da vida humana e que não é possível nos desfazermos dele. Da mesma forma que as gerações dos próximos cem, duzentos, trezentos anos, pensarão ser impossível se desfazer das máscaras.

quinta-feira, 4 de junho de 2020

Por que não somos 70% se queremos combater o fascismo?

A tentativa de formação de uma frente única contra o fascismo bolsonarista é composta por segmentos da esquerda aliados a setores do centro e da direita, que têm uma proposta conciliatória que transcendem as ideologias partidárias.

Em cenários de insatisfação popular, capazes de mobilizar grandes massas, a proposta de conciliação de classes acontece quando, na tentativa de amenizar os ânimos inflamados, as classes dominantes – sem abrirem mão do posto que ocupam na hierarquia social – oferecem melhorias e propõem arrefecimento dos movimentos revolucionários. É o que testemunhamos, por exemplo, quando classes trabalhadoras decidem parar suas atividades enquanto não tiverem suas demandas atendidas, e os patrões oferecem pequenos reajustes de salário e prometem melhores condições de trabalho. Com isto, enfraquecem os movimentos revolucionários e minimizam as possibilidades de novas greves.

Quando parte da massa revolucionária se sente atendida com as migalhas ofertadas pelas elites dominantes, os movimentos revolucionários perdem a coesão e, consequentemente, enfraquecem por sua própria fragmentação. Organizar novamente estes grupos fragmentados se torna uma tarefa difícil.

O enfraquecimento dos levantes populares cria um cenário simulado de paz e harmonia. Afinal, grupos que estavam habituados a não terem nada, passam a se contentar por adquirir um pouco mais.

No entanto, a conciliação de classes, por ter impedido a ruptura do sistema de exploração, mantém as relações anteriormente constituídas com a mesma estrutura, apenas levemente melhoradas. Com isto, por terem enfraquecido os movimentos revolucionários e criado as condições que dificultam sua reorganização, as classes dominantes criam o cenário para o endurecimento do sistema de exploração.

Com a retorno de políticas de austeridade, retirada de direitos e exclusão das políticas sociais, vão-se criando novamente cenários de insatisfação popular por parte de quem sofre as consequências destes desmandos propiciados pelas elites. Com as grandes mobilizações enfraquecidas por uma suposta conciliação de classes, cujos interesses se opõem e, portanto, não são conciliáveis, cria-se o cenário perfeito para a instauração do fascismo.

Isto porque aquele "cala-boca" dado pelas elites às massas populares insatisfeitas, até então organizadas e dispostas a causarem uma ruptura no sistema através de uma revolução, depois de algum tempo se mostra insuficiente. Com os movimentos revolucionários enfraquecidos e a volta do sentimento de insatisfação individual, as pessoas isoladas ou os pequenos grupos passam a ter menos força de combate. Enquanto isto, por outro lado, o poder politico das elites dominantes representadas pelo Estado, ganham força, criando um regime autoritário que somente cresce por causa do desmantelamento daqueles movimentos revolucionários.

Assim, temos um Estado armado, voltado aos interesses das elites, ignorando os anseios populares das classes menos favorecidas, disposto a usar a força para coibir movimentações esparsas e enfraquecidas pela conciliação de classes.

A formação de uma frente única composta por segmentos da direita, vinculada aos interesses do empresariado, donos de capital financeiro, patrões e a burguesia, composta principalmente por pessoas brancas e heterossexuais, e da esquerda, voltada aos interesses dos trabalhadores assalariados, à criação e manutenção de diretos sociais, bem como pautada pelo respeito e igualdade das minorias étnicas, propõe exatamente uma tentativa de conciliação de classes.

Quando patrões e empregados se unem para a defesa de um interesse supostamente comum, na verdade o que está acontecendo é a união numérica de pessoas para que sejam mantidas as condições de uma "normalidade" que sempre se pairaram na exploração dos segundos pelos primeiros. Porque não existe interesse comum quando há patrões e empregados disputando espaço na sociedade.

Criar uma frente única contra o fascismo é devolver à sociedade um cenário simulado de paz e tranquilidade para que as coisas voltem a ser como eram antes do cenário caótico que se formou exatamente pelo mesmo motivo que agora se pretende utilizar para combatê-lo: a conciliação de classes de interesses antagônicos e irreconciliáveis.

Se, para você, que agora está lendo este texto, o cenário anterior ao autoritarismo praticado pelo Governo Bolsonaro era de paz e tranquilidade, então talvez seja hora de rever seus privilégios e lembrar que entre os anos de 1997 e 2017 assassinatos de pessoas negras aumentaram 429% enquanto, no mesmo período, o aumento de assassinato de pessoas brancas foi de 102%. Paz e tranquilidade para quem?

Não deve haver pacto com a direita golpista que criou o cenário que agora nos rodeia. É preciso haver união entre as esquerdas para derrubar não somente o fascismo bolsonarista, mas também todo o sistema capitalista que o criou.

"Como explicar o Lula presidiário?"

Passada uma década da saída do Presidente Lula do cargo de Chefe do Executivo, ainda me deparo frequentemente, sempre que teço qualquer crítica ao atual governo, do sanguinário Jair Bolsonaro, sou confrontado com questionamentos do tipo "E o Lula?", "O Lula foi preso, Babaca!" ou "Como explicar o Lula presidiário?".
 
Para além de toda a pobreza retórica presente no discurso que insiste em não rebater críticas, limitando-se a trazer novos (ou nem tão novos assim) questionamentos, como os mencionados acima, uma coisa que eu REALMENTE gostaria de entender é quando pessoas usam um fato construído por qualquer pessoa, passível, portanto, de erro, como fato inquestionável e absoluto. E olha que eu tô só falando de "erro", nem tô entrando na questão do lawfare e da perseguição nítida, disfarçada de institucionalidade.
 
"O Lula foi condenado e preso" é um discurso em voz passiva. Mas também pode ser dito na forma de voz ativa do seguinte modo: "O Judiciário condenou e determinou a prisão do Lula". Aqui o verbo foi conjugado por outro sujeito e, sem entrar na questão do Lula ser ou não culpado dos crimes pelos quais foi condenado, quando dissemos que alguém (judiciário) praticou um verbo (condenou) em um objeto (o Lula), estamos dizendo que alguém fez algo.
 
Não existem dados prontos quando estamos falando de construção de sociedade. Tudo é criação. Tudo é ação. E como ação humana, tudo tem um propósito ou uma motivação. "O Judiciário prendeu o Lula" não diz nada sobre a conduta do Lula. Antes, diz do próprio Judiciário.
 
Reforço que não estou sequer adentrando – ainda – na inocência ou na culpa do acusado. Apenas, tratando o discurso de forma abstrata. Podemos até substituir o Lula por outro réu. Imagine eu dizendo "O Judiciário perseguiu Bolsonaro". Isso fala mais sobre o judiciário ou sobre Bolsonaro? A mim, fala mais sobre o Judiciário. "O Lula foi preso" ou "o Judiciário mandou prender o Lula" significa que pessoas com alguma intenção praticaram um ato. Presumir que a prisão do presidente seja justa pressupõe que o ato praticado pelo judiciário seja revestido de alguma validade. Jesus Cristo foi preso. Quem o prendeu, fez por quê? Eduardo Cunha foi preso. Por que o foi? Lula foi preso. Por quê? Dá para pressupor necessariamente que todas as prisões foram justas e corretas? Basta lembrarmos que menos de dois séculos atrás o Judiciário garantia aos senhores de engenho a propriedade de pessoas negras escravizadas, o que talvez demonstre que o Judiciário garantir ou não qualquer coisa não induz à pressuposição da validade, da legitimidade, da moralidade desta coisa;
 
Dizer que o Lula foi preso como algo posto, válido, natural, inquestionável, significa dizer que o Judiciário não erra, que o Judiciário não persegue, que o Judiciário não age dolosamente para condenar alguém que prejudique algum dos seus interesses. Francamente, soa até ingênuo supor que as decisões do Judiciário sejam todas imutáveis e inquestionáveis, como se não fossem passíveis de serem revistas.
 
Qualquer explicação para o Lula ter sido preso pode não ser nada esclarecedora. Ele pode ter sido preso por crimes que cometeu. Pode ter sido preso por perseguição política. Pode ter sido preso por erro judicial. Tentemos agora explicar, não "o Lula ter sido preso", mas, "o Judiciário ter condenado Lula à prisão".
 
E aqui a gente começa a debater sobre a inocência do presidente. O Judiciário expressamente condenou o Lula "sem provas, mas com convicção". Na minha formação de advogado, uma coisa eu aprendi: sem provas não há imputação de fato ilícito. Eu jamais poderia condenar alguém sem prova expressa, inquestionável e inequívoca de que essa pessoa tenha cometido o ato pelo qual está sendo acusada. Se o Lula é inocente, não sei. O que sei é que não tenho prova de que ele é culpado. E se eu quiser condenar com base na presunção, posso pressupor que a pessoa que rebate crítica ao Bolsonaro perguntando pelo Lula é uma pessoa desprovida de um mínimo de inteligência e precisa ser calada. Imagina que desagradável eu tentar calar uma pessoa a comentar nesta postagem apenas por pressupor e acreditar que qualquer comentário seu não deva sequer ser levado em consideração. Só com base em presunção, sem nenhuma prova. Imagina mandar prender alguém por isso... Então, sobre a culpa ou a inocência do Lula eu não falo. Mas, sobre o julgamento dele ter sido justo, isso eu posso afirmar com absoluta segurança: não foi.
 
Um juiz mancomunado com a acusação, instruindo o Ministério Público a forjar as provas que ele mesmo iria analisar formalmente nos autos; um juiz que havia recebido convite para ser ministro do STF pelo governo do então candidato a presidente, caso vencesse as eleições. Vale mencionar que o candidato ganhava de todos os demais nas pesquisas, exceto do próprio Lula. O juiz sabia que somente poderia ser nomeado se tirasse do jogo eleitoral a único candidato que estava liderando as pesquisas, deixando o caminho livre para o candidato que fizera a proposta. Essa manobra utilizando as instituições para fazer parecer válida é o que chamamos de lawfare. Está nítido.
 
Por fim, lembremos que quem manda no Estado são os donos de capital, os financiadores de campanhas, mantenedores de caixa dois, donos de empresas que serão contratadas pelo Estado para prestação de serviços, fornecimento de produtos, que serão favorecidas com leis que retiram direitos trabalhistas e promovem isenções fiscais... Com esses detentores do dinheiro aliados ao projeto neoliberal do candidato Bolsonaro mandando no Estado, é fácil notar que há um interesse do Estado, nos seus poderes constitutivos, o que inclui o Poder Judiciário, em proporcionar o cenário perfeito para a implantação do projeto neoliberal do candidato Bolsonaro. Assim, é fácil notar que o Judiciário faz o jogo político de modo a defender os interesses dos donos do dinheiro. Nem precisa ser esperto demais para explicar então que o Judiciário em todas as instâncias tinha interesse em neutralizar o Lula para abrir o caminho para o projeto neoliberal que enriqueceria ainda mais os empresários financiadores do Estado.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

O beco sem saída de um sistema que te obriga a pecar

O diálogo versava sobre um processo que meu interlocutor estava movendo em face de uma empresa. Ele havia tido acesso à contestação apresentada pelo adversário e estava chocado com a quantidade de mentiras ali narradas e com a quantidade de falhas técnicas cometidas – ausência de documentos e mesmo documentos que corroboravam suas alegações iniciais. Junto com essas constatações, ele ainda me narrava, num tom de exasperação, o incômodo que sentiu com a postura da advogada do seu litigante durante a audiência de conciliação.
 
– Não é possível que alguém minta daquela forma e volte para casa com a consciência tranquila.
 
Pus-me a pensar na minha própria trajetória profissional e não pude deixar de me colocar no lugar dessa advogada. Embora me mostrasse bastante satisfeito com o péssimo trabalho prestado pelo escritório do seu adversário, que favorecia meu interlocutor, não execrei a postura daquela advogada, tampouco condenei o profissional que elaborou a peça de defesa com tantas falhas:
 
– Isso é resultado dessa política estúpida que impera nos escritórios de advocacia. Fazer mais em quantidade por menos em qualidade. Muito trabalho, pouca técnica. Eu acho é pouco que eles se deem mal! Mas, a advogada que fez sua audiência é uma vítima. Não é a ela que seu ódio deve ser direcionado. Quem tem que se foder mesmo é o escritório onde ela trabalha.
– Soube que ela foi demitida.
– Sério?! Não me surpreende! Só confirma o que penso. Provavelmente ela era uma boa profissional. E tinha que receber seu salário obedecendo cegamente às determinações do patrão. Ao se atrever a descumprir uma ordem, teve sua cabeça pedida.
 
Em seu estarrecimento, demonstrava não acreditar que um profissional pudesse se esforçar para tentar retirar um direito que sabia ser do outro apenas para que pudesse se adequar às diretrizes dos chefes.
 
Então quem ficou surpreso fui eu.
 
– Eu não sei qual a sua surpresa. Não é assim que funciona tudo dentro do capitalismo? “Vamos destruir o meio ambiente, sabemos que é errado, mas fazemos isso em troca de uns centavos, alimentamos a famigerada indústria da moda, fazemos feliz o empresário e tiramos disso nosso sustento” ou “Vamos maltratar animais em cativeiro, inserindo neles hormônios de todos os tipos, mantendo-os confinados em celas superpopulosas, como presidiários brasileiros, alimentamos a indústria da carne, fazemos feliz o empresário e tiramos disso nosso sustento”. Isso é o capitalismo! Ou fazemos isso ou morremos de fome. Não culpo o advogado empregado. É tão vítima desse sistema quanto as 1.127 costureiras desgraçadas de Bangladesh que morreram no desabamento do prédio em 2013. E para quê? Para alimentarem o sistema com seu trabalho escravo porque tinham que sustentar uma família.
 
Tais constatações reforçam a minha crise com a nossa sociedade que, de uns tempos para cá vem assolando meus pensamentos com uma frequência gigantesca. E quando digo às pessoas que tenho sonho de sair desse convívio tóxico, minimizando tanto quanto possível meu contato com esta sociedade, isolando-me no mato como narra Thoureau em seu livro Walden, sinto que muita gente não compreende o alcance do meu incômodo.
 
Vejo sempre que há uma espécie de tendência entre as pessoas de adotarem uns discursos vazios, publicando em suas redes sociais mensagens que parecem extraídas de livros de autoajuda, nas quais muito se fala sobre “valorizarem as pequenas coisas”. No entanto, essas mesmas pessoas parecem que não se tocam de verdade de que há coisas mais importantes que bens materiais, dinheiro, consumo, e seguem perpetuando esse ciclo nefasto de ruptura da moral vigente, de esvaziamento de princípios em troca de uns poucos centavos, na luta por uma sobrevivência dificultada pela falsa necessidade incutida em suas mentes, de que é preciso ter mais do que se precisa. Não, eu não me excluo deste grupo.
 
O profissional que mente em uma audiência para garantir o lucro do seu patrão é o mesmo profissional que vende plano de internet e telefone para o consumidor, escondendo dele que terá de pagar multa se romper o contrato; é o mesmo profissional que tem cachorro em casa, que adora animais, mas não pensa duas vezes antes de matar de forma extremamente dolorosa uma foca a pauladas, para vender sua carne, sua banha, seu couro: é o profissional que precisa sustentar a própria família, é o profissional precisa comer, pagar aluguel, sustentar filho...
 
Para um advogado empregado, um caso é apenas mais um caso, de uma planilha com outros cinquenta casos para cumprir num dia. Eu mesmo pude experimentar essa realidade em diversos estabelecimentos em que trabalhei. Para esse advogado, não há tempo para analisar uma situação, para fazer uma defesa justa, dentro de parâmetros legais. Para esse advogado, o que se evidencia é o risco de perder o emprego se propuser ao chefe uma defesa justa, incentivando-o a reconhecer o direito do outro. Esse advogado é apenas obrigado a copiar e colar, copiar e colar, copiar e colar, sem sequer poder pensar no impacto que isso tem na vida de uma pessoa.
 
As pessoas têm princípios, claro. E muitas vezes não se dispõem a abrir mão deles. Até o momento em que não encontram um prato de comida em casa, ocasião em que, provavelmente, sua elasticidade seria muito maior para suportarem as condições que o patrão impõe.
 
Eu tenho princípios. Muitas vezes me recusei a cumprir ordens, muitas vezes não me vendi ao sistema. E só pude fazer isto porque sabia que por trás de mim havia um suporte financeiro familiar com o qual eu poderia contar em último caso. Ainda assim, paguei caro: fiquei oito meses desempregado em um ano, sete meses desempregado em outro, dez meses em outro. Porque tenho meus princípios éticos e morais e não me disponho a baixar a cabeça para a indústria do consumo, não me disponho a vender minha força de trabalho para quem não reconhece meu real valor... Discurso lindo. Seria ainda mais se fosse absolutamente verdadeiro. Se eu não tivesse um suporte familiar em última hipótese, será mesmo que meus princípios seriam tão fortes, tão inabaláveis? Antes de qualquer coisa, eu precisaria comer. E eu pergunto a quem estiver me lendo: se sua escolha fosse entre comer para sobreviver ou ser honesto com seus princípios, você morreria de fome? Provavelmente eu não. Ou, mantendo-me firme em minhas convicções, daria um tiro no meu próprio ouvido para não ser obrigado a abrir mão daquilo em que acredito em troca de uma vida sem propósitos.
 
São constatações como esta que me fazem insistir em dizer que a vida é uma droga, que viver é uma atividade extenuante, cansativa e desagradável.
 
Ainda sobre trabalhos de merda impostos por um sistema de merda, pergunto: qual a diferença entre o advogado que fode a vida de uma pessoa – que para ele é só mais um caso – e um assaltante a mão armada que atira na vítima? Quando eu tomo a casa de um devedor do banco que eu defendo, quando eu tiro o ressarcimento da família do pai morto atropelado por um trem, quando eu fecho uma rádio de uma cidade porque não paga direitos autorais, o que faz de mim uma pessoa menos pior que aquela outra que disparou o gatilho em troca do celular de última geração?
 
Ao tratar cada caso como uma mera tarefa a ser cumprida, dou-me conta de que posso estar tirando dessas pessoas bens que eles passaram a vida inteira para juntar (possivelmente explorando o trabalho de outras pessoas também)? Dou-me conta de que essas pessoas se suicidam quando têm sua casa hipotecada, ou veem fechada a rádio de onde tiram a sobrevivência? O que me diferencia do assaltante que matou o dono do celular para levar comida para os três bebês que ele tem em casa?
 
É possível até que me digam: “Ah, mas o bandido nem matou para sustentar um bebê. Ele matou para ostentar um iPhone!” E quando eu contribuo com meu trabalho honesto, auxiliando o meu patrão a fechar o estabelecimento comercial que sustenta toda uma família, em troca do salário com o qual eu compro o meu iPhone, por que isso faz de mim alguém digno e faz do outro um criminoso? O bandido que assalta, não por comida, mas para ostentar uma roupa cara – e, consequentemente não tem a seu favor o salvo-conduto do estado de necessidade para justificar seu crime – é muito diferente do CEO de uma grande companhia que desmata e obriga toda uma população de um vilarejo a inalar gases tóxicos que invariavelmente irão lhes matar? Qual é a diferença, se cada um faz o que faz para se adequar a uma sociedade de consumo? A mesma que me faz tomar a casa de um devedor do banco para quem eu trabalho, em troca de um salário que me permitirá ter o meu iPhone.
 
Não pense você que se atreve a me ler que estou fazendo uma campanha para que você odeie os advogados. O que chamo é uma reflexão que nos permita reconhecer que praticamente qualquer trabalho feito para manter esse sistema é tão infame quanto. E quem o exerce, quase sempre o faz porque precisa sobreviver.
 
O trabalho supostamente honesto é quase análogo à lavagem de dinheiro. Para lavar dinheiro, você adiciona várias etapas na circulação dos valores financeiros de origem ilícita, criando uma cadeia gigantesca, até que na última etapa já se tenha perdido sua origem, ocultando-se a ilicitude subjacente à circulação da quantia em questão. É assim que enxergo as nossas profissões em sua grande maioria: uma lavagem do gesto, uma limpeza do ato.
 
O assaltante atira no trabalhador e seu ato delituoso é imediatamente reconhecido como tal. Já o banco explora o trabalhador. O banco cobra juros. O banco hipoteca sua casa. Tudo isto está dentro da legalidade. O advogado defende o banco, dentro da legalidade. O banco recupera "seu prejuízo" ao retomar a casa hipotecada daquele trabalhador. O advogado ganha seu salário de merda e nem tem tempo para avaliar a gravidade do que fez antes de passar para o próximo caso. Para aquele trabalhador, a casa era seu sonho tomado. Para aquele trabalhador, a casa era o abrigo da sua família. A família vai morar nas ruas. A família adoece. A família morre de fome. E quem fez isso? Ninguém.
 
Ninguém mesmo? Ou será que toda essa cadeia serviu só para fazer uma "lavagem" para o ato do banco, para o ato do advogado, para o ato do contador, para o ato do administrador de empresas, todos envolvidos na atividade financeira que destruiu uma família?
 
Legalidade não necessariamente se confunde com moralidade. O meu trabalho é legal. O seu trabalho é legal. A sociedade está sedimentada sobre trabalhos legais. Quantos deles são moralmente defensáveis? O marceneiro que constrói o cadafalso tem menos responsabilidade que o carrasco que aperta o nó do enforcado?

terça-feira, 2 de junho de 2020

A necessária democratização do conhecimento como fator de transformação social

Reclamamos do coleguinha que faz bobagem na política, que é racista, que é homofóbico, que é machista, que é preconceituoso... Mas, o que já fizemos para lhe mostrar o outro lado da moeda? Como agimos para orientá-lo à mudança?

Achamos ruim aquela família pobre e ignorante que "não sabe votar", mas o que já fizemos para lhes ensinar a votar? Falamos para as pessoas a língua que as pessoas entendem? Ou será que vivemos debatendo ideias com intelectuais no ambiente acadêmico, apenas falando difícil para inflarmos nosso próprio ego? Você já parou para pensar na sua responsabilidade pelas atitudes do outro?

Já fiz parte de grupo de WhatsApp em que havia cerca de cinquenta homens gays fazendo contato para amizade, flerte, etc. Dessa galera, a maioria reproduzia um discurso heteronormativo, nocivo e segmentador, dizendo que na hora da paquera "não curtia homens afeminados". Alguns iam além e diziam que não gostavam sequer de andar com esses homens afeminados, porque entendiam que eles os expunham ao ridículo, "denunciando" sua sexualidade para a sociedade que, supostamente não poderia saber que eram gays.

Muitas vezes revirei meus olhos, impaciente com o preconceito arraigado, até que, cansado de ler tanto discurso machista e heteronormativo, saí do grupo.

Em uma conversa sobre racismo, criminalidade e exclusão social, um familiar meu que não chegou a cursar o nível médio, num dado momento comentou:

"Falam que é minha responsabilidade porque aqueles pretos da favela debandaram para o crime. Minha responsabilidade por quê?! O que eu fiz? Eu não tenho culpa de nada. Não fiz nada para levá-los ao crime. Por que eu sou responsável?"

Irritado com o comentário racista, encerrei a conversa ali mesmo, deixando aquelas perguntas ecoando no ar, sem respostas.

Em mesa de bar, bebendo com amigos acadêmicos, por diversas vezes destilei discursos lindíssimos, explanando o quão prejudicial era a "imposição de padrões de masculinidade pela mídia, que se replicavam no discurso de homens, mulheres, heterossexuais, homossexuais, bissexuais, na forma da busca pela padronização comportamental e estética, influenciando a formação de gostos e elementos de atratividade sexual, fomentando o preconceito contra tudo o que subvertesse o padrão estabelecido".

Já discursei em rodinhas de intelectuais acerca das "movimentações sociais pós-abolição da escravatura, que excluíram os negros da sociedade de consumo, obrigando-os a viverem à sua margem, em guetos e favelas, e negando-lhes condições mínimas de subsistência digna, de forma que, impedidos de viverem inseridos no mesmo contexto social dos brancos, ricos e privilegiados, resvalaram para a criminalidade, como alternativa para a própria sobrevivência" e de como o "direito penal e a cultura carcerária são fatores de controle social, uma vez que, aliados com a mídia de massa que reforça a cultura do medo, tende a incutir na cabeça do cidadão socialmente incluído a ideia de que aqueles excluídos precisam ser mantidos neste status quo, já que representam uma ameaça à ordem social vigente".

Refletindo sobre isto, perguntei-me qual foi minha contribuição efetiva para mudar a sociedade à minha volta, a comunidade palpável, concreta, tangível. E lembrei da oportunidade que tive de orientar cinquenta homens gays, em linguagem que os fizessem compreender, sobre como seu discurso heteronormativo havia sido moldado por imposição de padrões comportamentais e como isso reforçava o preconceito e a homofobia dentro da própria comunidade gay, influenciando o aumento das taxas de violência contra pessoas LGBT. Eu poderia ter mudado o pensamento de cinquenta pessoas! E cada uma dessas pessoas poderia ter mudado o pensamento de outras cinquenta...

Pensei na oportunidade que tive de conversar com meu parente racista sobre não ser sua, especificamente, individualmente, a responsabilidade pela criminalidade, mas mostrando-lhe que tanto ele quanto eu fazemos parte de um sistema excludente e que, por causa desse sistema, existe um incremento dos números na criminalidade praticada por quem é socialmente excluído. E então, perdi a oportunidade de fazer com ele aprendesse uma lição e a replicasse para outros parentes e amigos, ampliando o pensamento sobre a necessidade de inclusão social de quem é marginalizado, incentivando a criação de projetos de inclusão social para melhorar a comunidade em que vivem.

Em vez disto, acabei me rendendo à minha impaciência contra a ignorância alheia, virando as costas para quem, de acordo com meu pensamento egocêntrico e vaidoso, deveria saber o mínimo e tinha obrigação de não ser racista, de não ser homofóbico o heteronormativo.

É comum sermos pessimistas com o cenário político quando constatamos que uma passeata composta por cem mil pessoas não representa mais que 0,07% de um universo de 150 milhões de eleitores e que, nas urnas, o resultado poderá ser diferente daquele pleiteado naquela manifestação popular.

Quase sempre lembramos que a maior parte da população não tem educação ou consciência política e não pensa de forma crítica, votando em qualquer candidato em troca de um botijão de gás ou de uma cesta básica. E quase sempre os criticamos por isso. Mas, o que já fizemos para levar a estas pessoas algum pensamento político que as faça refletir para além do imediatismo necessário à própria subsistência? Será que paramos para pensar que, se hoje somos instruídos como somos, foi porque algum dia houve alguém que se dispusesse a nos instruir?

Queremos a transformação social, mas o que fazemos de fato para consegui-la? Em vez de debatermos juridiquês, sociologismos e filosofismos apenas para outros teóricos, quantas vezes os levamos para o churrasco de domingo, traduzidos em linguagem digerível para pessoas que, muitas vezes, não têm o mesmo cabedal teórico que nós?

Passamos anos problematizando o machismo e a misoginia, mas hoje ainda vemos aquele vizinho analfabeto, alcoólatra, praticando abuso contra sua esposa. E quando tentamos lhe mostrar, de forma que se faça compreensível pela sua base de conhecimento, dizendo-lhe que "é preciso ajudar nas tarefas de casa, sim.", uma parte da intelectualidade vigente se volta contra os termos usados e passa a debater sobre a necessidade de não se usar o termo "ajudar", pois a obrigação do homem nas tarefas de casa deve ser compartilhada e equivalente à da mulher. Deixo claro que não sou contrário a debates teóricos e problematizações sobre terminologias. E também entendo que a obrigação mas tarefas domésticas são de ambas as partes que coabitam. Mas, antes, sou favorável a ações paralelas e simultâneas e, se a forma daquele homem – que teve seu caráter moldado em um meio no qual o pensamento machista foi massificado em sua cabeça – entender que para fazer cessar o sofrimento da mulher, é preciso que ele "ajude em casa", defendo que lhe seja assim ensinado, até que os teóricos cheguem a um consenso acerca da melhor terminologia. Isso é democratizar o conhecimento. Isso é transformar a realidade com ações práticas baseadas em teorias estudadas. Enquanto pessoas estudiosas se revoltam, alegando ser um erro grotesco usar o termo "homem feminista" e defendem que o correto é "homem pró-feminismo", a esposa continuará sofrendo violência doméstica até que se chegue a um consenso sobre a palavra mais adequada para orientar o homem que pratica essa violência?

Nosso conhecimento não é democrático quando não se faz compreender na língua que o nosso interlocutor entende. E aqui, insisto que, se por um lado é essencial haver debates entre pensadores dentro da academia, por outro lado urge que as elucubrações intelectuais saiam pelos portões das universidades e alcancem as ruas, as associações de bairro, as comunidades carentes. Se o seu conhecimento técnico, acadêmico, hermético, não dialoga com a sociedade, ele serve para quê?

Dialética da Criação

Dialética da Criação Trago um mundo inteiro dentro em mim? Mãos que cá já estavam moldaram-me em argila, constituindo-me à sua semelhança. R...