quinta-feira, 30 de julho de 2020

Thammy Miranda, Natura e o identitarismo à luz da luta de classes

1. Brigar pela inclusão do Thammy Miranda em qualquer espaço é necessário, sendo, portanto, louvável a atitude da Natura de inclui-lo como garoto-propaganda dos seus produtos no dia dos pais.

2. No entanto, qualquer pauta identitária deve ser debatida à luz da luta de classes, a fim de evitar ainda mais fragmentação de grupos, deixando a classe trabalhadora ainda mais frágil que já é.

3. Em sendo assim, entendo merecedora de elogios a atitude da Natura por levantar o debate incluindo um homem trans em sua publicidade e dar visibilidade a um grupo social tão excluído e estigmatizado.

4. No entanto, uma obra comercial, publicitária, que não mexe nas estruturas que sustentam todo um sistema passível de críticas também precisa ser devidamente criticada.

5. Assim, mesmo quando aplaudimos a Natura por sua ação, não podemos perder de vista que uma empresa que atinge o patamar da 4ª maior empresa de cosméticos do mundo, atrás apenas da L'Oréal, da Procter & Gamble e da Unilever, não podemos esquecer que seu patrimônio liquido de 2,7 bilhões de reais se constituiu a partir da exploração do trabalho dos mais de um milhão revendores no Brasil, e 600 mil nos demais países latino-americanos.

6. Com apenas 36 lojas físicas (em maio de 2019), a Natura não assegura direitos trabalhistas à maior parte dos seus "colaboradores", que, em sua maioria constituem-se de mulheres, com idades entre 18 e 54 anos e sem ensino superior.

7. A empresa obtém seus lucros, principalmente a partir da atividade informal realizada por mulheres sem renda fixa, com maior flexibilização, intensificação e extensão do tempo de trabalho, constituindo-se, portanto, como exploração do trabalho feminino precarizado.

8. Desta forma, se por um lado ações publicitárias de cunho inclusivo como a da Natura devem ser fomentadas, por outro, é preciso que a sociedade continue lutando para que grandes corporações como essa empresa sejam tenham maior responsabilidade social para com as pessoas que trabalham para assegurar seus lucros. É preciso, portanto, mudar toda a estrutura do trabalho na atualidade, se quisermos reduzir as explorações, que geram desigualdades e contribuem para a exclusão de pessoas trans do mercado de trabalho formal.

terça-feira, 7 de julho de 2020

Haddad no Roda Viva e o dogma da democracia no estado burguês

Sobre Haddad no Roda Viva de ontem. Ando cada vez mais de saco cheio dessa retórica pró-institucionalidade quando a abstração das instituições não está preparada para observar o mundo material ao qual pretende regulamentar. Na fala do entrevistado – corroborada pelas perguntas dos entrevistadores – democracia institucional liberal e acrítica se torna um fim em si mesma, pouco importando suas implicações práticas.

Haddad, como a maioria dos brasileiros, defende a alternância no poder, como um objetivo final. Como se fosse saudável e não se tratasse de um gasto excessivo de dinheiro público um projeto de governo criar um Estado em oito anos, com investimentos e estratégias, para que nos oito seguintes fosse desmontado em nome de um novo projeto, com novos gastos e novas estratégias.

Essa alternância no poder como algo saudável em si mesmo é o que permite que Bolsonaro e sua política neoliberal e extremista de direita destrua o país como vem fazendo depois de quatorze anos de um governo social-democrata ter alavancado a sociedade através de conquistas de direitos e ocupação de espaços de resistência, ainda que de forma incipiente e com muita coisa a ser feita. Tudo isto em nome dessa democracia-fim, que supostamente seria necessária, de forma inquestionável e quase dogmática. Num cenário apocalíptico, teríamos oito anos de governo Bolsonaro destruindo o país com políticas de austeridade e, na melhor das hipóteses, apenas como pausa para um respiro, um governo progressista subsequente passaria oito anos seguintes gastando dinheiro público para reverter a tragédia socioeconômica causada pelo atual presidente.

Fernando Haddad, no entanto, teceu críticas à permanência de Hugo Chavez no poder, de Xi Jinping, de Evo Morales, sem tecer qualquer comentário sobre a necessidade desses governantes se manterem no poder como forma de resistir aos ataques neoliberais estadunidenses e europeus.

É preciso repensar a democracia institucionalizada no Estado burguês e ter coragem de levar ao debate público as críticas a essa institucionalidade, tratada como sagrada. É preciso não ter medo para levantar a pauta da permanência no poder como uma alternativa muitas vezes necessária a propostas de esvaziamento de projetos estatais em nome de projetos governamentais. O atual debate acerca da democracia reflete a velha dicotomia entre a forma e o conteúdo. Alternância no poder sem resultados práticos para os governados, em nome do "respeito às diferenças", nada mais é senão a redenção da formalidade em detrimento da materialidade.

domingo, 5 de julho de 2020

Normatização institucional, moralidade e botequins nas noites de sábado.

Como você vai protestar contra qualquer sistema ou regime político, ou contra qualquer forma de governo, se você deixa a autoridade governamental ditar as regras da sua própria sobrevivência? Como pretende quebrar a atual organização social se você chancela a legislação criada para ferrar a sua existência?

Até uma semana atrás, presenciei uma grande parte da minha bolha social virtual vociferando impropérios contra as medidas dos governos, em suas três esferas, federal, estadual e municipal, acerca de isolamento social e sua flexibilização, acerca de abertura de templos, bares, escolas, uso obrigatório ou não de máscaras e a reabertura dos comércios.

Vi manifestações indignadas de pessoas que considero e que se autodeclaram progressistas ou integrantes da esquerda, contra as ameaças aos empregados com os cortes de direitos anunciados por Jair Bolsonaro e suas Medidas Provisórias assassinas, com suas aparições públicas sem máscara, suas declarações estapafúrdias que sempre resvalavam para algum ponto no qual poderíamos constatar o seu nada surpreendente pouco caso com a vida alheia.

Chegamos, inclusive, dois dias atrás, a mostrar indignação com os idiotas do Leblon que, tão logo tiveram acesso a bares e restaurantes sustentados pelo trabalho cada vez mais precarizado do proletariado do subúrbio, lotaram as ruas, aglomerando-se quando o país ultrapassava a marca de 60 mil mortes pelo coronavírus.

Mas, enfim... Eis que os governos já tomaram suas decisões: vamos abrir tudo, morra quem morrer, o que são cinco ou sete mil mortos?, a economia não pode parar, não sou coveiro, e daí?, quer que eu faça o que? Bares estão abertos shoppings também o povo não pode passar fome não fosse a oposição não iríamos mais estender o auxílio emergencial a quem necessita mas seguimos ignorando 28 mil militares que o sacaram indevidamente e não os devolveram aos cofres públicos esses mesmos que irão quebrar por causa dos seus 600 reais mas que tinham um trilhão e duzentos bilhões de reais para injetar em bancos (escrevi por extenso para mostrar realmente o tamanho da quantia) o cidadão médio xinga e chuta a porta desabafando eu não acredito que o governo está fazendo isso com a população ele quer nos matar... A gente perde até o ar e a pontuação, de tanta indignação!

Mas, então, chega sábado. Aquele sábado à noite, do qual todo mundo espera alguma coisa. E para meu estarrecimento, o que mais vi nas minhas redes sociais foram fotos de boys and girls em seus respectivos rolezinhos! O bar abriu, pô, o que eu posso fazer? Estava mesmo precisando sair de casa depois desses cem dias de isolamento em que o país não se isolou. Ain, amigo, não tenho culpa nenhuma. Foi um decreto do prefeito que liberou. Vai morrer gente de qualquer forma, se eu não tivesse ido tomar a minha cerveja hoje, outro teria e disseminaria o vírus da mesma forma. Não tem jeito!

É sempre o "não tem jeito" o argumento final. O dogma que advém da naturalização da tragédia. Não tem jeito! Vai morrer gente de qualquer forma. Não tem jeito! Se não fosse de coronavírus, seria de dengue. Não tem jeito! E as pessoas vão passar fome, sem trabalhar? Não tem jeito! Os governos fazem o que querem com a gente. Não tem jeito! No final, a gente sempre perde. Não tem jeito! Sempre foi assim e sempre será. Não tem jeito! E de não jeito em não jeito, vamos aceitando o lugar que decidem que devemos ocupar.

Legitimamos a lei que reflete a vontade de quem nos domina. E, formatados que somos dentro da ideologia que estrutura nossa sociedade, em vez de nos insurgirmos contra uma lei que não representa a nossa vontade, balançamos a cabeça, resignados, em aceitação: "está na lei, deve ser cumprido".

E então, vamos para o bar, aquele mesmo que não frequentamos nos últimos cem dias apenas porque a norma formal os manteve fechados. Aquele mesmo bar que criticamos, dois meses atrás, quando os jornais mostraram a mureta da Urca lotada e estampavam o absurdo número de 4 mil mortos no país por coronavírus. Porque a norma proibia aglomeração. Vamos para o bar quando os números de mortes ultrapassam 60 mil agora que a norma permite. 

Vocês não têm senso moral. Vocês apenas seguem o fluxo. Porque vocês não têm consciência alguma. Se é moralmente reprovável, mas formalmente admitido por qualquer institucionalidade, vocês aceitam. Vocês são tão gado quanto aqueles a quem criticam. Porque vocês apenas vão, bovinamente, satisfazer suas próprias vontades, permitindo que governos lhe digam onde vocês podem estar. E para vocês pouco importa onde podem estar. Desde que haja cadeira e mesa com cerveja gelada e tiragosto para todos.

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Sobre o tempo.

Vou falar diretamente para minhas e meus colegas advogadas e advogados. Mas, para um grupo específico dentro da classe. Quero conversar diretamente com aquele profissional que, pelo fato de um ultrapassado decreto imperial lhe conferir o título de Doutor, e por, no curso, ter decorado umas tantas expressões em latim, sente-se membro do nível mais elevado da elite intelectual, ocupando, com isto, um lugar hierarquicamente superior ao dos meros mortais; falo para você, coleguinha reaça, que acredita de fato no sucesso do capitalismo e acha de verdade que você só não enriqueceu ainda porque não está trabalhando o suficiente; para você que acha que falar em luta de classes é mimimi de esquerdista perdedor.

Vou ilustrar uma cena para você, a qual você conhece bem: Você trabalha como empregado ou como associado em um escritório qualquer. Um desses, dentre tantos, que te chama de PJ e não te paga como se houvesse vínculo de emprego, mas exige de você todos os compromissos do empregado. Ali você tem seu pagamento mensal, que não chega nem perto da metade daquilo que, nos tempos de universidade, você acreditava e sonhava que ganharia. Você ganha causas e mais causas para o escritório do seu chefe e acha um absurdo o grupo de sócios levar os honorários integralmente, sem deixar com você sequer aquele 1% que lhe renderia um bônus de dois dígitos antes do ponto, logo naquele mês de aperto por causa da fatura mais alta do cartão de crédito daquela viagem que você fez ao Nordeste.

Você trabalha em horário integral, muitas vezes, inclusive, ultrapassando a hora, cujo pagamento extra você não receberá. Seu chefe tem com você um contrato de exclusividade, não lhe sendo possível pegar casos processuais por fora do trabalho, para atuar por conta própria, mesmo sendo contratado como um prestador de serviços. Além de ser facilmente descoberto, podendo ensejar o desfazimento do seu contrato de trabalho, você não teria tempo para se dedicar às causas. Como iria para uma audiência daquele processo que você patrocina por conta própria se no horário você estará trabalhando para sua coordenadora, que estará trabalhando para sua gerente, que estará trabalhando para o dono do escritório?

Mas, seu chefe também é um cara incrível e lhe propõe parceria!

"Doutora, se algum amigo seu lhe levar um caso, a colega não poderá pegar, não é? É aí que a gente entra, traga o caso para o escritório. Te damos aqui computador, telefone, e-mail, as ferramentas necessárias para você atuar na causa. Quando houver audiência, poderá ir sem afetar o horário de trabalho, já que o caso é nosso. Então, o escritório fica com 70% dos ganhos e os outros 30% são seus por ter trazido o cliente. Que tal? Imperdível, não é?"

Qual sua outra opção? Dispensar o caso, já que, de qualquer forma você não poderia mesmo atuar nele por não ter tempo livre? Não tem nada a perder, então leva o cliente para seu patrão que, com olhos vorazes e boca salivando, engole os 70% dos honorários que ele deixará com o advogado, que poderia ser somente você. Se você tivesse tempo. Mas, você é um cara muito esperto, já garantiu aí uns 30% do dinheiro-que-poderia-ser-todo-seu-se-você-tivesse-tempo. Ou isso, ou ver o cliente ir para outro escritório, encher de dinheiro os bolsos do concorrente da sua chefe. Melhor encher os dela e você conseguir uns farelos disso, né não?

Você atua no caso com dedicação. O cliente é seu amigo, poxa, você o levou para o escritório, então tem que garantir tratamento VIP. Seu chefe não lhe paga pra isso, mas você se dedica por que você é bom. E cada vez que você atua neste caso, você pensa no quão injusto é o dono do escritório que te paga um salário baixíssimo ficar com quase dois terços de um valor que poderia ser só seu. Se você tivesse tempo.

Por que, afinal, você faz todo o trabalho de pesquisa de jurisprudência, faz todo o trabalho de redigir um texto, pensando nos melhores argumentos para a causa; por que você fica três horas aguardando para falar com o juiz que sequer queria te ver, e no fim, seu trabalho inteiro só servirá para enriquecer seu patrão? Aí você lembra que não pegou o caso por conta própria porque não tem tempo livre. E seu tempo está sendo usado para garantir seu salário mensal, muito, muito, muito abaixo daqueles honorários que uma só ação irá render, de um cliente que é seu amigo, que levou  caso até você, e não até a sua patroa; a cliente é alguém que estava disposta a te pagar porque confia no seu trabalho. E que você, por ter vendido seu tempo para um empresário em troca de um salário mensal, não poderá receber. Dê-se, portanto, por satisfeito em ter os 30%.

Aposto que você sempre achou injusto seu patrão receber mais do que você, somente por ele ter disponibilizado uma mesa, uma cadeira, um computador e conexão wi-fi. Afinal, quem fez o trabalho pesado foi você! Você até acharia justo pagar o chefe pelos meios que ele disponibilizou para que você exercitasse seu ofício de advogar. Você é uma profissional justa, não iria querer explorar também os instrumentos da sua patroa sem lhe dar uma contraprestação. Mas, para você, o justo seria que você ficasse com 80% e ele com 20%. É isso que você sabe que seu tempo vale em relação aos meios de produção que o empresário lhe forneceu. Mas, é com o seu salário que você compensa o tempo que disponibiliza para seu chefe ter todo o lucro.

Você viu como, ao longo do texto todo, o fator tempo foi enfatizado. Você viu o quão limitado você fica por ter seu tempo vendido ao seu patrão em troca de um pagamento mensal que você mesmo entende ser muito menor do que o que deveria ser pago. Pois então, coleguinha, reaça, defender o socialismo e a luta de classes é sobre pagar por este tempo que você vende ao empresário por um valor irrisório aquilo que este tempo efetivamente vale. Agora, arrisque dizer para quem o comunismo se mostra uma ameaça.

Dialética da Criação

Dialética da Criação Trago um mundo inteiro dentro em mim? Mãos que cá já estavam moldaram-me em argila, constituindo-me à sua semelhança. R...